Superlotação da obviedade

Pedro Telles da Silveira
10 min readFeb 23, 2021

Quais os limites da história digital num país marcado pela exclusão e desigualdade social?

O subtítulo deste texto provém do grupo de discussão de mesmo nome, cujo encontro ocorreu em 23 de fevereiro como parte das atividades do II Curso de Introdução à História Pública, promovido pela Rede Brasileira de História Pública. Tive a sorte de contar com Anita Lucchesi, Fernando Sossai, Gilliard Prado, Luiz Otávio Correa, Marcella Albaine, Rodrigo Bonaldo e Waldomiro da Silva Júnior como colegas de mesa. O texto apresentado é a versão estendida da fala, da qual apresentei apenas um resumo.

Também agradeço a Francieli Borges por ter apontado para o livro de Ricardo Terto e por tê-lo tornado acessível para mim.

O livro de Ricardo Terto é "Quem é essa gente toda aqui? Internet e acessibilidade no Brasil da pandemia" e foi recentemente publicado pela Todavia.

Um pessimista, um cínico e um cético entram em um bar no fim da pandemia, assim começa a piada (Terto, 2021, 49).

Não fui eu quem começou essa piada, mas Ricardo Terto num livrinho primoroso recém-publicado sobre o Brasil, a pandemia e as redes sociais. De certa forma, a piada, cujo final o autor não entrega, e suas personagens, risíveis e ridículas, talvez porque se levem a sério demais, representam um momento que já passou, já voltou e já cansou: ninguém sabe o que restará do Brasil após a pandemia tampouco quando ou como ela acabará. Quem sabe é pessimista, cínico ou cético; nos três casos, há uma falha na atenção ao presente, mas não é a própria possibilidade de colocar as coisas em perspectiva, perceber que a visão de mundo é uma visão de mundo, e não o mundo, que o Brasil da pandemia parece ter perdido?

O diagnóstico de Terto é que estamos numa crise de obviedade, a qual torna até o discurso crítico redundante. “O óbvio é o protocolo de saúde mais importante dessa década, ou talvez até do século” (Terto, 2021, 11). Entretanto, no Brasil da pandemia, há uma espécie de “superlotação da obviedade”:

No óbvio, padaria vende pão, e funciona. Porém, estamos no tempo e no lugar onde é preciso dizer isso todos os dias. E se eu torcer para chover pão? Não funciona. E s eu pedir à funerária para trazer pão? Não existe, ainda (Terto, 2021, 11).

Algo semelhante parece ter acontecido à história digital no contexto da pandemia. Ano passado, Anita Lucchesi, Thiago Nicodemo e eu assinamos a introdução de um dossiê sobre história digital e história global que organizamos para a revista Esboços, da Universidade Federal de Santa Catarina. O dossiê, proposto na segunda metade de 2019, teve sua introdução “atualizada” pelo advento da pandemia. Naquela situação, como hoje, todo ensino se tornou remoto. Do mesmo modo, o que ocorreu com os debates sobre a história digital, sobre a inquietação a respeito de toda história, quando feita no computador ou na internet, se tornar história digital? Com as bibliotecas e os arquivos fechados, hoje parece óbvio que usamos o computador para tudo, mas nem tudo que fazemos é história digital, embora seja possível dizer que todas e todos nos tornamos historiadores nas plataformas digitais. Será que a história digital se tornaria ela mesma óbvia e, como tal, presente em todos os cantos? Ou ela se tornaria óbvia e, com isso, irrelevante? Seu enquadramento teórico, desnecessário?

Em parte, acredito que os problemas derivem da indefinição — ou pluralidade — do que é a história digital. Uma primeira compreensão é a da história digital como a aplicação de métodos computacionais na análise histórica, o que a inseriria numa história da especialização de profissionais crescentemente capacitados para lidar com as linguagens computacionais e metodologias diversas. Nessa visão, os antecessores da história digital seriam as digital humanities e a precursora desta, as humanities computing, assim como a história serial francesa e a cliometria norte-americana. Uma segunda compreensão é a da história digital como a utilização de ferramentas digitais para ampliar a divulgação e o acesso do público ao conhecimento histórico produzido na academia. Com essa segunda vertente, a história digital é uma atualização da história pública através das tecnologias de mídia.

Os caminhos não são excludentes, mas têm divergências significativas. No primeiro caso, a expansão e o fortalecimento da história digital dependem da ampliação da infraestrutura de acesso à internet nos campi universitários; da formação de alianças interdepartamentais e interdisciplinares entre os cursos de história, ciências sociais, jornalismo e computação; da introdução de componentes curriculares nos cursos de graduação em história que contemplem as habilidades necessárias para formar boas e bons historiadores digitais. Em suma, é uma questão interna à disciplina, embora pareça obvio que, no contexto atual, os investimentos necessários para alcançar esse grau de desenvolvimento não serão feitos — da mesma forma, existe uma “externalidade” importante, qual seja, a dependência da universidade no contexto da pandemia com relação às plataformas de reuniões e trabalho remoto pagas, como Zoom, Google Meet e Microsoft Teams, como já destacou Domenico Fiormonte em texto traduzido por Leonardo Nascimento no Brasil.

O segundo caso, porém, é mais complexo, porque na sua intersecção com a história pública, torna-se necessário perguntar quem é o público da história digital. Necessariamente tal questão não é apenas interna à disciplina histórica, mas engloba outros atores e fatores.

Quem tem acesso à internet no Brasil? A última pesquisa TIC Domicílios, conduzida entre novembro de 2019 e março de 2020, apontou que 71% dos brasileiros têm acesso à internet, uma figura que é mais ou menos uniforme regionalmente — o Sudeste tem 75% de lares com acesso à internet, enquanto o Nordeste é a região onde esse índice é menor, com 65% das residências conectadas; Sul, Norte e Centro-Oeste estão nas posições intermediárias com, respectivamente, 73%, 72% e 70% dos lares. Apesar dessa figura relativamente alta — afinal, ¾ dos brasileiros têm acesso à internet –, é significativo que apenas 39% dos lares tenham computador. Mesmo que isso reflita uma tendência mais ampla pela qual o laptop e o PC são menos importantes como ferramentas de trabalho do que aplicativos no celular (como o WhatsApp), uma tendência que provavelmente se alterou durante a pandemia, é interessante perceber como os dados de acesso à internet divergem quando analisados segundo os recortes de classe, em primeiro lugar, e segundo o recorte da exclusividade de acesso à internet pelo celular, em segundo lugar.

Quando analisados por classe, é significativo que enquanto 39% dos lares brasileiros tenham computador, o aparelho esteja presente em 95% dos domicílios de classe A; 85% de classe B; 44% de classe C; e apenas 14% das classes D e E. Para além do desnível abrupto entre as classes A e B e C, D e E, vale notar que usuários de internet nas últimas faixas de renda sejam os mesmos usuários que tenham acesso à internet exclusivamente através do celular. O segundo dado, nesse sentido, é ainda mais relevante.

A pesquisa aponta que usuários menos alfabetizados, nas classes C, D e E, situados em ambiente rural, além de na sua maioria mulheres frente a homens, todos esses usuários têm acesso à internet somente através do celular. Trata-se, em outras palavras, de acesso por 3G, e não por banda larga.

À sua maneira, os dados mostram um retrato da desigualdade de infraestrutura do país, caracterizado pela oposição entre meios urbano e rural, além de centro e periferia. Os dados também importam porque nos levam a consider que não basta saber qual a porcentagem da população brasileira tem acesso à internet ou não, mas como se dá esse acesso — e se, contra a exclusão e a desigualdade, tal acesso torna realmente o mundo acessível aos seus usuários.

Nesse sentido, o principal aspecto é que o acesso à internet pelo celular é um acesso mediado por aplicativos que, apesar de possibilitarem o empoderamento do usuário, pouca autonomia lhe concedem, como já destacou Lori Emerson. É um uso cotidiano, misturado à sociabilidade diária, relacionada a necessidades de trabalho, contato afetivo, informações de familiares e amigos e à circulação de notícias sobre o mundo recebidas diretamente nos aplicativos de mensagem direta e nas redes sociais, descontextualizadas de sua proveniência original. Creio ser necessário levar isso em conta ao refletir e estimular o letramento digital como condição da história digital. O letramento digital implica romper uma dinâmica de utilização da internet que é marcada por sua imediaticidade, seja pela comparação entre fontes de informação diversas, seja pelo aprendizado de linguagens de programação e o entendimento acerca de como os aplicativos funcionam, conhecimentos que já implicariam o contato com PCs e laptops, usualmente disponíveis apenas em escolas e centros comunitários — ambos fechados durante a pandemia. De qualquer forma, a suspensão da imediaticidade das redes é contrária a um ritmo de vida que muitas vezes não pode ser quebrado. Como lembra Terto, “Ter tempo e ser pobre no Brasil é quase subversivo” (Terto, 2021, 27).

Em outro texto, que ainda está para sair, Anita Lucchesi e eu mencionamos o caráter experimental e exploratório da história digital. No exterior, isso tem sido pensado sob a rubrica do thinkering, um neologismo cunhado por Andreas Fickers para reunir os dois aspectos do pensar e do brincar que caracterizam a prática da história digital. No Brasil, a esse respeito, o principal insight é de Dilton Maynard, para quem a escola, sobretudo a pública, é o grande laboratório das humanidades digitais no país.

Em certa medida, tal situação não deixa de ser uma resposta à precariedade institucional e de infraestrutura brasileira, a qual transforma as iniciativas de história digital em projetos isolados, descontínuos, individuais e provisórios. A precariedade é tanto o mote para a inventividade quanto o sinal da falta de alternativas. Voltando ao livro de Ricardo Terto, agora numa passagem mais longa,

(…) a precariedade é capaz de promover uma desenvoltura e resiliência que é sim ferramenta de sobrevivência e de orgulho, digo isso com o olhar periférico com o qual ainda observo o mundo ao meu redor e como admirador da tecnologia gambiarra, que não é só uma invenção, mas uma declaração. Observe que toda gambiarra não tem vergonha de deixar bem claro o que é, como quem diz Eu sou um prego no chinelo sim, eu sou sobrevida e sou eu que impeço o pé no asfalto quente. E tem mais, eu sou uma caixa de fósforo e sou um instrumento musical, sou lona, tijolo e altar, caco de vidro, cola e pipa, sou até o gesto rápido de empurrar a catraca para trás e deixar o próximo passar, o gesto de segurar a porta é uma tecnologia de sobrevivência a que nós nos habituamos a manejar. Mas ela nasce do mesmo lugar em que deixamos o pé propositalmente para o outro tropeçar (Terto, 2021, 25).

Então, qual é o significado da nossa precariedade, que parece fortalecer e condenar a história digital a um aspecto marginal da nossa prática historiográfica?

Uma questão adicional é o lugar que o conhecimento gerado e difundido pela história digital ocupará numa paisagem social e midiática já caracterizada pela precariedade. “Ter acesso a informações”, nos lembra Terto, “não necessariamente te torna uma pessoa bem informada” (2021, 28), uma vez que o ambiente digital no Brasil, afirma ele, apenas reproduz as dinâmicas da desigualdade previamente existentes. Um exemplo é o WhatsApp, “o galho que acessa a fruta e o prego que restaura o chinelo”, já que o WhatsApp “reforma o acesso à informação” (2021, 29). O WhatsApp não é o único aplicativo que remedia o acesso à informação, mas, no contexto brasileiro, é o que faz isso melhor. O conhecimento adquirido através do WhatsApp está situado na tênue fronteira entre popularização e exclusividade. Aquela mensagem foi “Encaminhada com frequência”, alcançou muitas pessoas, mas ela utiliza uma retórica do conhecimento secreto que chegou ao usuário para além dos canais oficiais ou reconhecidos, esses que, na sua abrangência, só podem ser suspeitos de obedecer interesses ocultos. Imediaticidade, afeto e exclusividade de acesso à informação estão a um passo de qualquer teoria da conspiração — e ela não vale apenas para usuários de determinada classe social, basta pensar que certa produtora de “documentários históricos” também afirma oferecer a verdadeira história do Brasil, aquela que os historiadores e os professores de história não contam, muito menos as historiadoras e as professoras de histórias, essas sim, não contariam a verdadeira história do Brasil.

Como pensar, então, a atuação da história digital, pautada por uma linguagem democrática, que vincula o acesso à informação com a universalização do conhecimento e a formação do senso crítico sobre o passado, com um contexto no qual a crítica é a “pílula vermelha” que lhe coloca no grupo seleto daqueles que sabem? Como tornar a história digital atraente num contexto em que o acesso e a exclusividade andam lado a lado?

De certa forma, o thinkering implica no reconhecimento de uma incompletude estrutural na prática da história digital, à qual restaria sempre uma margem de indeterminação e novidade. José Messias, num artigo também recente no qual discute a teoria das mídias através dos conceito de “precariedade” e “gambiarra”, semelhante característica seria parte de todo objeto técnico, assim como do funcionamento de toda mídia. É justamente essa margem que permite a invenção e a transformação nas mediações técnicas com as quais nos situamos no mundo. Dessa maneira, a gambiarra não seria uma falta num organismo já completo; pelo contrário, ela mostraria que o aparelho é um constructo passível de novos desenvolvimentos. Para o autor, a gambiarra seria uma forma de conhecer através da experimentação, o que sinalizaria a passagem de um contexto pós-colonial marcado pela precariedade para uma epistemologia pós-colonial que invalida qualquer recorte fixo entre sujeito e objeto, além da essencialidade a esses termos.

Ainda que tentadora, leio sua proposta como uma aposta, pois acredito que é muito diferente experimentar numa situação dotada de estruturas que permitam acolher os fracassos e os erros do que ser forçado a inventar pela ausência dos requisitos básicos para iniciar qualquer atividade digna de merecer este nome. Aplicada ao contexto colonial brasileiro, o pior que poderia acontecer à história digital é que ela se tornasse o elogio heroico da precariedade. Quanto a isso, para que a história digital não seja mais marginal tanto à prática historiográfica quanto à circulação de enunciados sobre o passado, é necessário não apenas que ela se fortaleça disciplinarmente, mas que ela se torne o resultado colateral do investimento em infraestrutura de acesso à internet, recriação de centros comunitários, investimento em educação, regulamentação da imprensa e criação de um arcabouço legal para a atuação das redes sociais. Uma boa história digital é o resultado de boas políticas públicas de acesso à internet.

Perto do fim da pandemia, um historiador, um cientista da computação e um especialista em políticas públicas entram num bar. Como termina essa piada?

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Pedro Telles da Silveira

Escrevo sobre história, música, política e o que mais me interessar no momento.